O “Cristianismo” Imposto Irresistivelmente: O Lado B do Calvinismo em Genebra.





Por Dave Hunt




Uma das mais claras e mais efetivas estratégias de Satanás foi enganar o imperador Constantino com uma falsa conversão. A influência desse evento único sobre a história subsequente, no âmbito religioso e secular, é incalculável. Os relatos diferem, se por meio de uma visão ou um sonho, como relatado por Eusébio e Latâncio [1], Constantino viu uma “cruz” no céu e ouviu uma “voz” proclamando (em alguns relatos as palavras estavam escritas na cruz), “sob este símbolo tu deverás conquistar”. No ano anterior o deus Apolo também prometeu a vitória a ele.

Os editos de tolerância de Constantino deram a todo homem “o direito de escolher sua religião segundo os ditames de suas próprias consciência e convicção honestas, sem compulsão e interferência do governo” [2]. A conversão de Constantino na visão de Schaff foi um maravilhoso avanço para o cristianismo: “a igreja ascende ao trono dos Césares sob a bandeira da cruz e dá novo vigor e brilho ao venerável império de Roma” [3]. Na verdade, essa “conversão” acelerou a corrupção da igreja por meio do seu casamento com o mundo[4].

Como poderia um verdadeiro seguidor de Cristo, cujo reino não é deste mundo e cujos servos não fazem guerra, ir para a guerra em Seu Nome? Claro, os Cruzados fizeram o mesmo mais tarde, abatendo mulçumanos e judeus para retomar a “Terra Santa” sob a garantia do papa Urbano II (correspondente à promessa de Maomé e do Alcorão aos mulçumanos) de perdão total dos pecados para aqueles que morressem nessa guerra santa (os mulçumanos chamam de 
Jihad).

Na verdade, os Cruzados, como todas as guerras dos papas, eram muito agostinianas. A Cidade de Deus tinha que ser defendida!

De Constantino a Agostinho



Como Durant e outros historiadores destacaram, Constantino nunca renunciou sua lealdade aos deuses pagãos. Ele não aboliu o altar de Vitória no Senado, nem o altar da Virgem Vestal, que cuidava do fogo sagrado da deusa Vesta. O Deus‑sol, não Cristo, continuou a ser honrado nas moedas imperiais. Apesar da “cruz” (na verdade a cruz do deus Mitra) nos escudos e nas bandeiras militares, Constantino tinha um medalhão em honra ao Sol pela “libertação” de Roma; e quando ele proclamou um dia de descanso, foi novamente em nome do Deus‑sol (“o dia celebrado para a veneração do sol” [5]), e não do Filho de Deus [6].

Durant nos lembra de que por toda a sua vida “cristã”, Constantino usou os ritos pagãos bem como os ritos cristãos e continuou a depender das “fórmulas mágicas pagãs para proteger lavouras e curar doenças” [7].

Que Constantino tenha assassinado aqueles que poderiam reivindicar seu trono, incluindo o seu filho Crispus, um sobrinho e um cunhado é uma indicação adicional de que sua “conversão” foi uma clara manobra política para unir o império, como muitos historiadores concordam. O historiador Philip Hughes, mesmo sendo um sacerdote católico, nos recorda que “em suas condutas, ele [Constantino] permaneceu, até o fim, muito mais pagão do que no início. Seu temperamento furioso, a crueldade que uma vez despertada não poupou nem mesmo a vida de sua esposa e seu filho, são […] testemunhas desagradáveis da imperfeição da sua conversão” [7].

Não muito após a nova tolerância, Constantino se viu diante de um problema que ele nunca havia antecipado: divisão dentro da Igreja Cristã, para a qual ele havia dado liberdade. Como nós notamos no último capítulo, essa divisão veio à tona no Norte da África com os donatistas que, preocupados com a pureza da fé, se separaram das igrejas oficiais estatais, rejeitaram suas ordenanças e insistiram no rebatismo dos clérigos que se arrependeram após terem negado a fé durante a perseguição que se levantou quando o imperador Diocleciano exigiu ser adorado como um deus[0].

Após anos de esforços inúteis para reestabelecer a unidade por meio de discussão, súplicas, concílios e decretos, Constantino finalmente recorreu à força, Frend explica:

Na primavera de 317, ele [Constantino] pôs em prática sua decisão ao publicar o “mais severo” edito contra os donatistas, confiscando suas propriedades e exilando seus líderes. Dentro de quatro anos, a liberdade universal de consciênciaproclamada em Milão foi abrogada, e o Estado, mais uma vez, se tornou um perseguidor, só que dessa vez em favor do cristianismo ortodoxo […]. [Os donatistas] nem entenderam nem se importavam com a conversão de Constantino. Para eles, era um argumento do diabo insistir que “Cristo era um amante da unidade” […]. Na visão deles, a hostilidade fundamental do Estado com a [verdadeira] igreja não foi alterada. [10]

Em sua própria época e sua forma, Agostinho seguiu a conduta de Constantino em seu tratamento dos donatistas, que ainda eram um espinho no corpo da Igreja Romana. “Enquanto Agostinho e os católicos enfatizavam a unidade da Igreja, os donatistas insistiam na pureza da Igreja e rebatizaram todos aqueles que vieram a eles dos católicos — considerando os católicos corruptos” [11].

Constantino estava “inquieto [como estaria Agostinho e seu discípulo Calvino] em sua perseguição aos ‘heréticos’ [proibindo] aqueles que estavam fora da igreja católica a se reunirem […] e confiscando suas propriedades […]. As mesmas coisas que os cristãos haviam sofrido, estava agora sendo praticado em nome do cristianismo” [12].

Como um bom católico desfrutando a benção do imperador e crendo na igreja estatal que Constantino estabeleceu, Agostinho perseguiu e até mesmo sancionou a morte dos donatistas e de outros cismáticos, como nós já vimos. Gibbon nos fala que a medida severa contra os donatistas “recebeu a aprovação fervorosa de Santo Agostinho [e assim] grande parte foram reconciliados [forçados a voltar] com a Igreja Católica” [13].

De Agostinho foi dito que “a própria grandeza de seu nome tem sido o meio de perpetuar os erros mais grosseiros que ele mesmo propagou. Mais do que ninguém, Agostinho encorajou a doutrina perniciosa da salvação pelos sacramentos de uma igreja terrena institucional, que trouxe consigo rituais sacerdotais com todos os males e as misérias que implicaram no decorrer dos séculos” [14].


De Agostinho a Calvino


Não há dúvida de que João Calvino ainda via a igreja de Cristo pelos olhos do catolicismo romano. Ele viu a igreja (como Constantino a moldou e Agostinho a cimentou) como uma parceira do Estado, que o Estado aplicava a ortodoxia (como a igreja estatal a definia) sobre todos os seus cidadãos. Calvino aplicou sua formação jurídica e seu zelo no desenvolvimento de um 
sistema de cristianismo baseado numa visão extrema da soberania de Deus, que pela força absoluta de sua lógica, obrigaria reis e toda a humanidade a conformar todos os assuntos à justiça. Em parceria com a igreja, reis e outros governantes imporiam o cristianismo calvinista.

Daqueles que creram em um reino milenar de Cristo na Terra, Calvino disse “a ficção é muito pueril para precisar de refutação ou para merece‑la” [15]. Até onde Calvino podia afirmar, o reino de Cristo se iniciou com Sua vinda à terra e está em processo desde então.

Rejeitando o reino futuro e literal de Cristo na terra por meio de Sua segunda vinda, para estabelecer um reino terreno, sobre o trono de Davi em Jerusalém, Calvino aparentemente se sentiu obrigado a estabelecer o reino por seus próprios esforços na ausência de Cristo.

A Bíblia deixa claro que se deve “nascer de novo” para “ver o reino de Deus” (João 3:3) e que “carne e sangue não podem herdar o reino de Deus” (1 Coríntios 15:50). Ignorando essas verdades bíblicas e seguindo os erros de Agostinho, Calvino estava determinado (juntamente com Guilherme Farel) a estabelecer o Reino de Deus na terra em Genebra, Suíça.

Em 10 de novembro de 1536, a Confissão de Fé, que toda a burguesia e todos os moradores de Genebra e súditos em seus territórios deveriam jurar aderir, e que Farel tinha redigido consultando Calvino, foi apresentada à cidade oficialmente. Era um longo documento com regras detalhadas cobrindo todas os negócios da membresia da igreja, frequência, pregação, obediência do rebanho e expulsão dos ofensores.

As autoridades de Genebra aprovaram o documento em 16 de janeiro de 1537. “Em março, os anabatistas foram banidos. Em abril, sob a instigação de Calvino, [uma inspeção casa a casa foi lançada] para garantir que os moradores de Genebra abraçaram a Confissão de Fé […]. Em 30 de outubro, houve uma tentativa de arrancar uma profissão de fé de todos os hesitantes. Finalmente, em 12 de novembro, um edito foi emitido declarando que todos os recalcitrantes ‘[que] não desejavam jurar à Reforma foram ordenados a deixar a cidade’ […]”[16].

A Reforma”? Houvera variações e diferenças entre várias facções quando a Reforma brotou, de Lutero a Zuínglio. Mas em Genebra, somente o calvinismo seria conhecido como “A Reforma” e “Teologia Reformada”. Essa reivindicação presunçosa ainda é defendida pelos calvinistas de hoje em todo mundo.

A primeira tentativa de Calvino falhou. Boettner reconhece, “devido à tentativa de Calvino e Farel de forçar um sistema tão severo de disciplina em Genebra, foi necessário para eles deixarem a cidade temporariamente” [17].

O Retorno Triunfante de Calvino


Três anos depois, no entanto, frente à oposição católica de dentro e a ameaça de intervenção armada pelos católicos romanos de fora, o conselho da cidade de Genebra decidiu que eles precisavam das fortes medidas de Calvino e o convidaram a voltar. Ele entrou na cidade em 13 de setembro de 1541. Dessa vez, ele acabaria por conseguir impor sua versão da Reforma sobre os cidadãos de Genebra com mão de ferro. Seu primeiro ato foi o de entregar ao conselho da

cidade suas 
Ordenanças Eclesiásticas, que foram adotadas em 20 de novembro de 1541. Stefan Zweig nos diz:

Uma das mais memoráveis experiências de todos os tempos se iniciou quando esse homem magro e severo entrou no Portão Cornavian [de Genebra]. Um Estado [a cidade‑estado murada de Genebra] estava para ser convertido

num mecanismo rígido. Almas inumeráveis, pessoas com incontáveis sentimentos e pensamentos, foram compactados em um sistema único e todo‑abrangente.

Essa foi a primeira tentativa [protestante] de fazer uma imposição na Europa […], uma subordinação uniforme sobre uma população inteira.

Com uma sistemática meticulosa, Calvino começou a trabalhar para a realização de seu plano de converter Genebra no primeiro Reino de Deus na terra. Era para ser uma comunidade sem corrupção, desordem, vícios ou pecados; deveria ser a Nova Jerusalém, um centro de onde a salvação do mundo radiaria […], toda a sua vida foi devotada a serviço dessa única ideia. [18]

A intenção de Calvino de estabelecer um governo eclesiástico ocuparia a maior parte do resto de sua vida. Embora reconhecendo a influência e o poder de Calvino, o Pequeno Conselho dos Sessenta e o Grande Conselho dos Duzentos, responsáveis pelas questões civis, resistiram ser assumidas por uma autoridade religiosa (Consistório), à qual Calvino ascendeu. A luta pelo poder continuou por anos, os conselhos até mesmo buscando reter o controle sobre algumas disciplinas na igreja tais como as excomunhões, com Calvino se recusando a ceder desafiadoramente.

Finalmente, em fevereiro de 1555, os partidários de Calvino ganharam a maioria absoluta no Conselho. Em 16 de maio, houve uma tentativa de rebelião contra a atitude de Calvino de expulsar certos oficiais libertários civis da Ceia do Senhor[19]. Os líderes do motim que fugiram de Genebra para Bern foram sentenciados a morte à revelia.

Quatro deles que não conseguiram escapar foram decapitados e esquartejados, e partes de seus corpos foram pendurados em locais estratégicos como advertência[20]. Evocando a frase “capangas de Satã” que ele usou anos antes contra os anabatistas, Calvino justificou essa barbaridade: “aqueles que não corrigem o mal quando podem fazer e seus ofícios requerem, são culpados” [21].

Desde o início em 1554 até sua morte em 1564, “ninguém mais ousava se opor ao reformador abertamente” [22]. Os oponentes de Calvino foram silenciados, expulsos ou fugiram para salvar as suas vidas. O “controle de Calvino da cidade continuou sem enfraquecer”. Ele estava determinado a fazer de Genebra a base para construir a Cidade de Deus de Agostinho em toda a parte. “Genebra se tornou o símbolo e a encarnação de ‘outra’ Reforma […]”[23]. Mas que os calvinistas de hoje alegam que era 
Reforma.

Tirania em Genebra


Talvez Calvino pensasse que ele era o instrumento de Deus para forçar a Graça Irresistível (uma doutrina‑chave no calvinismo) sobre os cidadãos de Genebra, na Suíça — mesmo sobre aqueles que provaram sua indignidade, resistindo à morte. Ele fez o seu melhor para impor a “justiça” irresistivelmente, mas o que ele impôs e a maneira com que ele impôs estavam longe da graça e dos ensinos e exemplos de Cristo.

Alguns daqueles que professam a fé “reformada” hoje, especialmente aqueles conhecidos como reconstrucionistas, tais como os recentes Rousas J. Rushdoony, Gary North, Jay Grimstead e outros (incluindo organizações como a 
Coalition on Revival), tomam a Genebra de Calvino como modelo para eles e assim esperam cristianizar os Estados Unidos e então o mundo. Muitos ativistas cristãos de menor apego a Calvino esperam impor uma vida piedosa ao modo ímpio de viver estadunidense de sua própria maneira, por meio de passeatas de protesto e organização de grandes blocos de votação. Ninguém trabalhou tanto e por tanto tempo tentando fazer isso do que Calvino.

Durant relata: 
Para regular a conduta leiga, um sistema de visitas domiciliares foi estabelecido […]. E os ocupantes foram questionados sobre todos os aspectos das suas vidas […]. A quantidade e as cores das roupas permitidas, o número de pratos permitidos em uma refeição foram especificados por lei.

Joias e rendas foram desaprovadas. Uma mulher foi presa por arranjar seu cabelo de uma maneira imoral […].

Censura de imprensa foi usada e ampliada a partir dos precedentes católicos e seculares: livros […] com tendências imorais foram banidos […]. Falar desrespeitosamente de Calvino ou do clero era crime. A primeira violação dessas ordens era punida com uma advertência, violações posteriores com multas, persistir na violação com prisão ou banimento da cidade. Fornicação era punida com o exílio ou afogamento; adultério, blasfêmia ou idolatria com a morte […] uma criança foi decapitada por agredir seus pais. Nos anos de 1558–1559 houve 414 processos por ofensas morais; entre 1542 e 1564 houve 76 banimentos e 58 execuções; a população de Genebra era na época de 20.000 pessoas. [24]

A opressão de Genebra não teria vindo sob a direção do Espírito Santo (“[…] onde o Espírito do Senhor está, há liberdade” [2 Coríntios 3:17]), mas sim da poderosa personalidade de Calvino e de uma visão extrema da soberania de Deus que negou o livre‑arbítrio ao homem. Assim a “graça” tinha que ser imposta irresistivelmente em uma tentativa não bíblica de infligir uma “santidade” sobre os cidadãos de Genebra. Em contraste à humildade, à misericórdia, ao amor, à compaixão, e à longanimidade de Cristo, a quem Ele amou e tentou servir, Calvino exerceu autoridade como o papado que ele desprezou. Além disso, ele criticou outros líderes protestantes por não fazer o mesmo:

Visto que os defensores do papado são tão amargos, ousados na representação de suas superstições, que na sua fúria atroz eles derramam sangue de inocentes, isso deveria envergonhar os magistrados cristãos que na proteção da verdade autêntica, eles estão inteiramente destituídos do espírito. [25]

Os defensores de Calvino negam os fatos e tentam inocenta‑lo do que ele fez, responsabilizando as autoridades civis. Boettner até mesmo insiste que “Calvino foi o primeiro dos reformadores a exigir uma separação completa entre a Igreja e o Estado” [26]. De fato, Calvino não somente estabeleceu a lei eclesiástica, mas ele codificou a legislação civil[27]. Ele manteve as autoridades civis para “promover e manter o culto externo a Deus, defender a sã doutrina e a condição

da igreja” [28] e ver que “nenhuma idolatria, nem blasfêmia contra o nome de Deus, nem calúnias contra a Sua verdade, nem outras ofensas à religião surgissem e fossem disseminadas entre o povo […] [mas] para prevenir a verdadeira religião […] de ser violada impune e abertamente, e de ser poluída pela blasfêmia pública” [29].

Calvino utilizou a força civil para impor suas doutrinas particulares sobre os cidadãos de Genebra e para aplicar tais doutrinas. Zweig, que se debruçou sobre os relatos oficiais do Conselho da Cidade para o dia de Calvino, nos diz, 
“dificilmente haverá um dia, nos relatos das definições do Conselho da Cidade, em que nós não encontramos o comentário ‘é melhor consultar o mestre Calvino sobre isso’”[30]. Pike nos relembra que foi dada a Calvino uma “Cadeira do Consultor” em todos os encontros das autoridades da cidade e “quando ele estava doente as autoridades viriam à sua casa para as suas seções” [31]. Ao invés de diminuir com o tempo, o poder de Calvino somente cresceu. John McNeil, um calvinista, admite que “nos últimos anos de Calvino e sob sua influência, as leis de Genebra se tornaram mais detalhadas e mais rigorosas” [32].

Não Irrite o Dr. Calvino!


Com controle ditatorial sobre a população (“ele governou como poucos soberanos fizeram” [33]), Calvino impôs o seu tipo de cristianismo sobre os cidadãos com açoitamentos, prisões, banimentos e queimas na estaca. Calvino foi chamado de “O Papa Protestante” e “O Ditador Genebrino” que “toleraria em Genebra as opiniões de apenas uma pessoa, dele mesmo” [34]. Concernente à adoção de uma confissão de fé em Genebra que foi feita obrigatória a todos os cidadãos, o historiador Phillip Schaff comenta:

Era uma incoerência flagrante que aqueles que tinham sacudido o jugo do papado como um fardo intolerável submeteriam suas consciências e intelecto a um credo humano; em outras palavras, substituir o antigo papado romano por um papado moderno protestante. [35]

Durant diz que 
“Calvino manteve o poder como a cabeça do seu consistório; de 1541 até sua morte em 1564, sua voz foi a mais influente em Genebra” [36]. Vance nos lembra que:

Calvino estava envolvido em cada aspecto imaginável da vida da cidade: regulamentos de segurança para proteger as crianças, leis contra o recrutamento dos mercenários, novas invenções, introdução do fabrico de tecidos, e até mesmo dentistas. Ele era consultado não somente sobre todos os assuntos importantes do Estado, mas sobre a supervisão dos mercados e a assistência aos pobres.[37]

Os esforços de Calvino com frequência eram louváveis, mas os assuntos de fé foram legislados também. A confissão de fé trazida por Calvino era obrigatória a todos os cidadãos. Era um crime a qualquer um discordar do papa protestante. Durant comenta:

Todas as reivindicações dos papas para a supremacia da igreja sobre o Estado foram renovadas por Calvino para a sua igreja […] [Calvino] era tão rigoroso como qualquer papa em rejeitar um individualismo de crença; esse grande legislador do protestantismo repudiou completamente esse princípio de julgamento pessoal com o que a nova religião começara […]. Em Genebra […] aqueles […] que não podiam aceitar isso teriam que procurar outro lugar para morar. A ausência persistente nos cultos protestantes [calvinista] ou uma recusa continuada a tomar a Eucaristia era uma ofensa punível.

A heresia se tornou de novo […] traição ao Estado e era punida com a morte […]. Em um ano, sob o conselho do Consistório, 14 possíveis bruxas foram enviadas à estaca sob a acusação de que elas persuadiram Satã a afligir Genebra com a praga. [38]

Calvino estava novamente seguindo os passos de Agostinho, que forçou a “unidade […] por meio da participação comum nos Sacramentos […]”[39]. Um médico chamado Jerome Bolsec ousou discordar da doutrina da predestinação de Calvino. Ele foi preso por dizer que “aquele que colocar um decreto eterno em Deus pelo qual Ele ordenou alguns para a vida e o resto à morte faz de Deus um tirano […]”[40].

Bolsec foi preso e banido de Genebra com a advertência de que, se ele retornasse, seria açoitado[41]. John Troillet, um tabelião da cidade, criticou a visão de Calvino da predestinação por “fazer de Deus o autor do pecado” [42]. De fato, a acusação era verdadeira, como nós veremos nos capítulos 9 e 10. A corte decretou que “daí por diante, ninguém ousaria falar contra esse livro [
Institutas] e suas doutrinas” [43].

Tão vã foi a prometida a liberdade de consciência que iria substituir a opressão intolerável dos papas!

O poder de Calvino era tão grande que se opor era equivalente à traição contra o Estado. Um cidadão chamado Jacques Gruet foi preso sob a suspeita de ter colocado uma placa no púlpito de Calvino que dizia em parte, “Hipócrita grosseiro…! Após o povo ter sofrido tanto eles se vingam a si mesmos […] perceba que você não tem apoio como M. Verle [que foi morto] […]”[44].

Gruet foi torturado duas vezes por dia de uma maneira similar a que Roma, que havia sido corretamente condenada pelos reformadores por aplicar tortura, torturava as suas vítimas nas inquisições daqueles que foram acusados de ousar discordar dos seus dogmas. O uso de torturas para “extrair” confissões foi aprovado por Calvino[45].

Após trinta dias de sofrimento severo, Gruet finalmente confessou — se verdadeiramente, ou em desespero para o fim das torturas, ninguém sabe. Em 16 de julho de 1547, “meio morto, ele foi preso à estaca, seus pés foram pregados na estaca, e sua cabeça foi cortada” [46].

Decapitação era uma pena por 
crimes civis; queimar na estaca era uma pena por heresia teológica.Aqui nós vemos que uma desavença com Calvino era tratada como uma ofensa capital contra oEstado.

Comportamento Irracional

 

Calvino seguiu os princípios de punição, coerção e morte que Agostinho advogou. Em relação soente a um período de pânico em face da praga e da fome, Cottret descreve “uma determinação irracional para punir os fomentadores do mal”. Ele fala de um homem que “morreu sob tortura em fevereiro de 1545, sem admitir os seus crimes […] o corpo foi arrastado ao meio da cidade, a fim de não privar os habitantes da queima a que eles tinham direito. Feiticeiros, como os heréticos […], foram caracterizados pelo combustível de suas qualidades […]. As execuções continuaram. Já aqueles detidos que recusavam confessar; as torturas foram combinadas habilmente para evitar matar o culpado de forma tola […], [alguns] foram decapitados […], alguns cometeram suicídio em suas celas para evitar a tortura […], uma mulher presa se jogou pela janela […]. Sete homens e vinte e quatro mulheres morreram nesse caso; outros fugiram” [47].

Em uma carta, Calvino aconselhou a um amigo: 
“o Senhor nos testa de uma maneira surpreendente. Uma conspiração foi descoberta de homens e mulheres que por três anos se empenharam em espalhar a praga na cidade por meio da feitiçaria […]. Quinze mulheres já foram queimadas e os homens foram punidos ainda mais rigorosamente. Vinte e cinco desses criminosos ainda estão na prisão […]. Até agora Deus tem preservado a nossa casa”.

Cottret continua: 
“Calvino, portanto, compartilha em todos os aspectos, as fantasias de suas comitivas. Ele encontrou ocasião para exortar os seus contemporâneos a perseguir os feiticeiros, a fim de ‘extirpar tal raça’ […]. Um par desses capangas de Satã foram queimados no mês anterior […]”[48]. Calvino até mesmo acreditou que o diabo, pelo menos em uma ocasião, ajudou a eliminar o mal de Genebra, “pois em outubro de 1546 ele [o diabo] arribou ao ar (conforme o que testifica o próprio Calvino) um homem que estava doente com a praga e que era conhecido por sua má conduta e impiedade” [49].

As Boas Intenções se Desviaram

 

Ninguém jamais teve tanto êxito em uma imposição totalitária da “piedade” sobre uma sociedade completa quanto João Calvino. E, portanto, ninguém provou como ele com clareza que a coerção não pode ser bem sucedida, porque ela nunca pode mudar os corações dos homens. A teologia de Calvino, como definida em suas Institutas, negou que o homem não regenerado pudesse crer e obedecer a Deus. Aparentemente, ele era ignorante quanto ao fato do senso comum de que uma escolha genuína é essencial se o homem quer amar e obedecer a Deus ou mostrar uma compaixão real aos seus companheiros. Mas por seus resolutos esforços de fazer os cidadãos de Genebra obedecerem, Calvino refutou suas próprias teorias de Eleição Incondicional e Graça Irresistível.

Aparentemente, o que ele provou, por anos de intimidação e força totalitária, foi o primeiro dos cinco pontos do calvinismo, a Depravação Total. Por mais que ele tentasse, existiram muitos que ele simplesmente não poderia persuadir a viver como ele decretou, não importa quão severa fosse a pena por falhar em fazer o que se ordenava.

Ele conseguiu criar muitos hipócritas externamente conformados às leis enquanto as autoridades estavam olhando, mas em seus corações almejavam e praticavam, quando possível, os mesmos velhos pecados do passado.

Sim, existiram relatos de visitantes que “maldições e blasfêmias, imoralidade, sacrilégio, adultério e vida impura”, tais como encontrados em todos os lugares estavam ausentes em Genebra[50]. Claro, John Knox estava entusiasmado. Ele chamou Genebra de “a mais perfeita escola de Cristo na terra desde os dias dos Apóstolos” [51]. Um visitante, ministro luterano que pensava que a coerção de Calvino era recomendável, escreveu em 1610, “quando eu estava em Genebra, observei algo grandioso de que eu me lembrarei e desejarei enquanto eu viver”.

Ele elogiou as “investigações semanais da conduta e até mesmo as menores das transgressões dos cidadãos” e concluiu, “se não fosse pela diferença de religião, eu ficaria preso a Genebra para sempre” [52].

Diferença de religião? Sim, o calvinismo não era o luteranismo, embora ambos perseguissem os anabatistas. O protestantismo envolvia várias facções rivais, para não mencionar milhões de verdadeiros cristãos que nunca obedeceram à Roma e assim nunca saíram dela como “protestantes”. Multidões incalculáveis desses crentes foram martirizados pelos católicos romanos sob a instigação de numerosos papas por mil anos antes de Lutero e Calvino terem nascido. Assim, a representação de hoje do calvinismo como “teologia reformada” que supostamente reviveu o verdadeiro cristianismo é grosseiramente imprecisa.

Admiradores de João Calvino citam histórias favoráveis como prova da influência piedosa dele e suas teorias exerceram na transformação de uma sociedade ímpia em uma que honrava a Deus. Seus métodos, no entanto, frequentemente longe de estarem de acordo com Cristo, não poderia ser justificada por 
quaisquer resultados. Nem poderiam os meios de Calvino, como nós já temos notado, ser justificados pelo fato de que torturas, prisões e execuções foram em pregados por Lutero, os papas e outros clérigos católicos romanos para forçar suas visões religiosas sobre aqueles debaixo de seu poder.

Um verdadeiro seguidor de Cristo não se pode conformar com esse mundo, mas seguir o exemplo de Cristo em seu comportamento, independente em que cultura ou tempo da história ele se encontre.

Os seguidores de Calvino se vangloriam de que ele era o maior dos exegetas, que obedeceu às Escrituras meticulosamente tanto ao formular sua teologia, quanto ao guiar sua vida. Calvino supostamente “se dispôs nitidamente a romper com a tradição onde ela era contrária a Palavra de Deus” [53]. Ao mesmo tempo, ele é defendido com a desculpa de que estava somente em conformidade com as tradições estabelecidas a muito tempo por Roma, que se iniciaram com Constantino.

Otto Scott diz, “nos primeiros anos da Reforma, a censura dos costumes e morais permaneceram estabelecidas, e aceita foi parte dos regulamentos antigos, existentes não somente em Genebra, mas em toda a Europa” [54].

Isso é verdade. Tais restrições desencorajaram tentativas de rebeliões de sair do papel, etc. Mas esse não era o cristianismo ensinado e exemplificado por Cristo e seus Apóstolos.

Não há maneira alguma de defender a conduta de Calvino com a Escritura. Sim, ele amava e cuidava daqueles que concordavam com ele. Sim, ele despendeu a si mesmo e encurtou sua vida visitando os doentes, cuidando do rebanho, e pregando continuamente. Mas em seu tratamento daqueles que discordavam dele, ele não seguiu, mas violou os ensinos e os exemplos de Cristo e dos Apóstolos.

A Inutilidade da “Piedade” Imposta Lamentavelmente, a despeito das ameaças e torturas, a Genebra de Calvino não era uma cidade santa, como as histórias otimistas selecionadas parecem indicar. Os relatos do Conselho de Genebra que sobreviveram desvendam uma cidade mais parecida ao resto do mundo do que os admiradores de Calvino gostam de admitir. Esses documentos revelam “um alto percentual de filhos ilegítimos, crianças abandonadas, casamentos forçados e sentenças de morte” [55]. A enteada e o genro de Calvino estavam entre os muitos condenados por adultério[56].

Calvino fez o seu melhor, mas falhou. Ele não foi capaz de produzir entre os pecadores a sociedade ideal — a Cidade de Deus de Agostinho — que ele vislumbrara quando ele escreveu suas 
Institutas. Os calvinistas ensinam que o não salvo, o totalmente depravado pode responder a Deus somente em descrença, rebelião e oposição. White explica: “o homem não regenerado, que é inimigo de Deus, deve, indubitavelmente, responder a Deus de uma maneira universalmente negativa” [57]. Esse sendo o caso, por sua própria teoria, os esforços de Calvino em Genebra estavam fadados ao fracasso antes de se iniciarem!

Falando pela maioria dos calvinistas, R. C. Sproul explica que segundo a “visão reformada da predestinação, antes da pessoa poder escolher a Cristo, ela deve nascer de novo” [58]. Por um ato soberano de Deus. Como Calvino poderia ter certeza de que Deus fez esse trabalho no coração de todos em Genebra? Se Deus não predestinou cada cidadão de Genebra à salvação, então Calvino estava errado em tentar força-los aos moldes cristãos. Apesar disso, a coerção até mesmo com o uso da força era uma parte integral do sistema praticado por Calvino e seus sucessores imediatos.

Se os calvinistas de hoje não aprovam tais condutas, não pode o calvinismo que produziu tal tirania também estar errado em outros aspectos?

Quantos dos “eleitos” estavam lá em Genebra? Como Jay Adams destaca, ninguém, nem mesmo Calvino saberia. O calvinismo não tem explicação alguma de como o eleito poderia ser identificado com certeza entre os hipócritas que agiram como se estivessem entre os eleitos pelo seu comportamento, mas assim fizeram apenas por medo das consequências temporais. Não importa o quanto Calvino tentasse, se Deus (segundo a doutrina de Calvino) não elegeu todos os cidadãos de Genebra à salvação (e Ele aparentemente não elegeu), então o mal ainda persistiria — embora não como ostensivamente em outras cidades daqueles dias.

Questiona-se, considerando o registro do insucesso abismal de Calvino, por que os reconstrucionistas de hoje, que abraçam o mesmo dogma, creem que serão capazes de impor vida piedosa sobre nações inteiras — ou porque os evangélicos continuam a elogiar Calvino, o opressor de Genebra.

Servetus: O Arqui-herético



Nascido Miguel Serveto em Villanova em 1511, o homem conhecido pelo mundo como aquele que “descobriu a circulação pulmonar do sangue — a passagem do sangue da câmara direita do coração pela artéria pulmonar, para e através dos pulmões, sua purificação pela oxigenação, e seu retorno pela veia pulmonar para a câmara esquerda do coração”. Ele era de alguma maneira “um pouco mais insano do que a média em seu tempo”, anunciando o fim do mundo em que “o Arcanjo Miguel lideraria uma guerra santa contra ambos anticristos, o papal e o genebrino” [59].

Inquestionavelmente, ele estava na classificação de um herege, cujos delírios a respeito de Cristo refletiam uma combinação de islamismo e judaísmo, que o intrigavam. No entanto, ele estava certo sobre algumas coisas: que Deus não predestina almas ao inferno e que Deus é amor. Suas outras ideias ultrajantes poderiam ter passado despercebidas se ele não as publicasse e não as tentasse forçar sobre Calvino e seus companheiros, ministros em Genebra, com discursos

agressivos, desdenhosos e blasfemos. Esse Servetus intitulou uma de suas obras publicadas de 
A Restituição do Cristianismo, o que só poderia ser tomado como uma afronta pessoal e intencional ao autor das Institutas da Religião Cristã.

Servetus escreveu pelo menos trinta cartas insistentes a Calvino, o que deve ter irritado grandemente este último. Em 13 de fevereiro de 1546, Calvino escreveu a Farel, “Servetus me enviou um longo volume de seus delírios. Se eu consentir, ele virá aqui, mas eu dou minha palavra que, se ele vier, se minha autoridade tem qualquer peso, eu não o deixarei sair vivo” [60]. Servetus cometeu o erro de passar por Genebra sete anos depois em sua ida a Nápoles e foi reconhecido quando foi à igreja (possivelmente com medo de ser preso por não ir) por alguém que o viu apesar de seu disfarce e o relatou a Calvino, que por sua vez ordenou sua prisão.

A Tortura e a Queima de Servetus


No início do julgamento, que durou dois meses, Calvino escreveu a Farel, “espero que a sentença seja a pena de morte” [61]. Obviamente, se o Deus que se acredita crer que predestina bilhões ao inferno ardente (todos que Ele poderia salvar), então, queimar na estaca um herético totalmente depravado pareceria completamente ameno e facilmente justificável. No entanto, essa lógica, de certa maneira, parece escapar de muitos cristãos evangélicos de hoje que admiram o homem e chamam a si mesmos de calvinistas.

A queixa, trazida por Calvino o detrator, continha trinta e oito acusações amparadas por citações dos escritos de Servetus. Calvino apareceu pessoalmente na corte como o acusador e como “testemunha principal da acusação” [62]. Os relatos pessoais de Calvino do julgamento se equipararam às injúrias de Servetus, com epítetos nada cristãos, tais como “o cão sujo limpou o focinho […] o pérfido patife suja cada página com ímpios delírios”, etc[63].

O Conselho de Genebra consultou as outras igrejas da Suíça protestante, e seis semanas depois a resposta delas foi recebida: Servetus deveria ser condenado, mas não executado. Contudo, sob a liderança de Calvino, ele foi sentenciado à morte sob duas acusações de heresia: unitarismo (rejeição da Trindade) e rejeição do batismo infantil. Durant nos dá os detalhes horripilantes:

Ele pediu para ser decapitado, ao invés de queimado; Calvino estava inclinado a apoiar esse apelo, mas o ancião Farel […] o reprovou por tal tolerância; e o Conselho votou que Servetus seria queimado vivo.

A sentença foi executada na manhã seguinte, em 17 de outubro de 1553 […] no caminho [para a queima] Farel importunou Servetus a receber o favor divino confessando os seus crimes por heresia; segundo Farel, o homem condenado respondeu, “eu não sou culpado, eu não mereci a morte”; e ele rogou a Deus o perdão de seus acusadores. Ele foi preso à estaca com correntes de ferro, e seu último livro foi amarrado ao seu lado. Quando as chamas alcançaram sua face, ele gritou em agonia. Após meia hora queimando, ele morreu. [64]

Calvino acusou Servetus de “argumento enganoso” contra o batismo infantil. Mas as últimas principais objeções (a despeito de suas outras faltas) foram na verdade mero barulho. A resposta irrisória de Calvino, de que ele seria purificado desse anticristão “tom mordaz ridículo e zombador que nunca o deixaria” [65] é condensada como segue:

Servetus [argumenta] que nenhum homem se torna nosso irmão a não ser pelo Espírito de adoção […] somente conferido pelo ouvir da fé […]. Quem presumirá […] que [Deus] não pode enxertar as crianças em Cristo por algum outro método secreto […]? Novamente ele objeta que as crianças não podem ser […] nascidas pela palavra. Mas o que eu tenho dito de novo e de novo e agora repito [é] […] Deus usa Seus próprios métodos para regenerar […], consagrar crianças a Si mesmo e inicia–las por um símbolo sagrado […]. A Circuncisão era comum às crianças antes de elas receberem o entendimento […]. Sem dúvida o projeto de Satã em atacar o pedobatismo com todas as suas forças é de […] apagar essa atestação da graça divina […], que desde o nascimento elas tem sido […] reconhecidas por Ele como Seus filhos […].[66]

Apesar de suas outras falsas visões, Servetus estava correto em suas objeções ao batismo infantil e foi, portanto, nesse respeito, queimado na estaca por uma crença bíblica que se opôs à heresia de Calvino da regeneração batismal de crianças, praticada em muitas igrejas calvinistas nos dias de hoje.

O Fracasso das Tentativas de Absolvição


Muitas tentativas foram feitas por seus seguidores modernos de absolver Calvino da morte cruel e inescrupulosa de Miguel Servetus. É dito que Calvino o visitou na prisão e pediu para ele se retratar. Ao mesmo tempo, a disposição para que Servetus fosse decapitado ao invés de queimado na estaca, não foi necessariamente motivada por benevolência, mas uma tentativa de transferir a responsabilidade à autoridade civil. Decapitação era a pena para crimes civis; queimar na estaca era por heresia. As acusações, no entanto, claramente foram teológicas, não civis, e foram trazidas pelo próprio Calvino.

Sem dúvida alguma, a autoridade civil só agia sob o comando da igreja. Segundo as leis de Genebra, Servetus, como um viajante de passagem, deveria ter sido expulso da cidade, não executado. Foi somente sua heresia que o condenou — e somente porque Calvino pressionou as acusações. Calvino fez exatamente o que

sua visão de Deus requeria, mantendo o que ele escreveu a Farel sete anos antes.

Aqui novamente, sobre os ombros de Calvino, nós vemos a longa sombra de Agostinho. Para justificar as suas ações, Calvino tomou emprestada a mesma interpretação pervertida de Lucas 14:23 que Agostinho usou. Frend disse, “raramente às palavras dos evangelhos são dadas um significado tão inesperado” [67]. Farrar escreve:

A ele [Agostinho] se deve […], sobretudo, o espírito amargo de ódio teológico e perseguição. Seus escritos se tornaram a Bíblia da Inquisição. Seu nome foi aduzido — e poderia haver uma Nêmesis mais terrível em seus erros? — para justificar a morte de Servetus. [68]

Houve grande aclamação dos católicos e protestantes juntos pela queima de Servetus. A Inquisição em Viena queimou a sua efígie. Melâncton escreveu uma carta a Calvino em que ele chamou a queima de “um piedoso e memorável exemplo para toda a posteridade” e deu “graças ao Filho de Deus” pela justa “punição desse homem blasfemo”. No entanto, outros discordaram e Calvino se tornou alvo de críticas.

Muitos que viviam nos tempos de Calvino reconheceram a perversidade de usar a força para promover o “cristianismo”. A total aprovação não existiu até mesmo dos amigos íntimos de Calvino[69]. Repreendendo Calvino pela queima de Servetus, o chanceler Nicolau Zurkinden, um magistrado, disse que a espada era inapropriada para forçar a fé[70]. Apesar de muitas repreensões, Calvino insistiu que a espada civil deveria manter a fé pura. Sua conduta estava alinhada à sua rejeição do amor de Deus por todos e sua negação da escolha humana para crer no evangelho.

Autojustificativas de Calvino


Alguns críticos argumentaram que a queima de Servetus somente encorajaria os católicos romanos da França a fazerem o mesmo aos huguenotes (70.000 foram abatidos em uma noite em 1572). Atingido por tal oposição, em fevereiro de 1554, Calvino publicou um pesado ataque destinado aos seus críticos:
Defensio orthodoxae fidei de sacra Trinitate contra prodigiosos errores Michaelis Serveti. Ele argumentou que todos aqueles que se opõem à verdade de Deus são piores do que os assassinos, porque assassinar mata meramente o corpo, enquanto a heresia condena a alma por toda a eternidade (isso era pior do que a predestinação de Deus à condenação eterna?), e que Deus instruiu explicitamente os cristãos a matarem os heréticos e até mesmo ferirem com a espada qualquer cidade que abandonou a verdadeira fé:

Quem defender que é errado o que é feito aos heréticos e blasfemadores, punindo-os [com a morte], torna-se cúmplice de seus crimes […]. É Deus quem fala, e está claro qual lei Ele teria mantido na Igreja até o fim do mundo […] de modo que não poupamos nem domésticos, nem parentes de qualquer um, e esquecemos toda a humanidade quando o assunto é combater para a Sua glória. [71]

O historiador R. Tudor Jones declara que esse tratado que Calvino escreveu em defesa da queima de Servetus, “é Calvino no seu comportamento mais frio […] tão assustador em suas maneiras quanto o trato de Lutero contra os camponeses rebelados” [72]. Oito anos depois, Calvino ainda estava se defendendo contra as críticas e ainda estava defendendo a queima de hereges. Em uma carta de 1561 ao Marquês de Poet, alto Mordomo do Reino de Navarra, Calvino aconselha severamente:

Não falhe em livrar o país desses canalhas zelosos que agitam o povo a se revoltar contra nós. Tais monstros deveriam ser exterminados, como eu exterminei Michael Servetus o espanhol. [73]

Um ano depois (somente dois anos antes de sua morte), Calvino justificou de novo a morte de Servetus, enquanto que ao mesmo tempo reconhecendo que ele era o responsável: “e que crime foi o meu se o nosso Conselho, 
sob minha exortação […], se vingou de suas blasfêmias execráveis (ênfase adicionada)?” [74]

Os calvinistas de hoje ainda persistem em oferecer uma desculpa após outra para inocentar seu herói. Contudo, até mesmo um calvinista fiel como William Cunningham escreve:

Não existe qualquer dúvida que Calvino antes, durante e após o evento aprovou explicitamente e defendeu leva-lo [Servetus] à morte, e assumiu a responsabilidade pelo negócio.[75]

A Vida Cristã Se Conforma à Cultura?



Os apoiadores de Calvino de hoje se queixam que “nenhum líder Cristão jamais tem sido, com tanta frequência, condenado por tantos. E o fundamento usual para a condenação é a execução de Servetus e a doutrina da predestinação” [76].

De fato, Servetus foi apenas uma das muitas vítimas do calvinismo quando levado às suas conclusões lógicas. Os defensores geralmente pleiteiam que o que Calvino fez era uma prática comum e que ele deveria ser julgado conforme o padrão de ser tempo. Ser “novas criaturas em Cristo” para não ir além do que as convenções de suas culturas e de seus momentos na história? Certamente não!

A soberania de Deus em controlar e causar todas as coisas que ocorrem é o coração do calvinismo. O fiel calvinista C. Gregg Singer declara que “o segredo da grandiosidade da teologia de Calvino está em seu entendimento do ensino bíblico da soberania de Deus” [77]. Calvino verdadeiramente poderia ter acreditado que ele era o instrumento escolhido de Deus desde a eternidade passada para coagir, torturar e matar, a fim de forçar os cidadãos de Genebra ao comportamento que Deus predestinou e
causou?

Calvino tem sido aclamado como um exemplo piedoso, que baseou suas ações e teologia unicamente na Escritura. Mas, muito do que ele fez não era bíblico e era extremo, embora consistente com sua teologia. Não é esse fato razão suficiente para examinar o calvinismo cuidadosamente, a partir das Escrituras? Que o papa e Lutero se juntaram em uma aliança profana com o governo civil para aprisionar, açoitar, torturar e matar dissidentes em nome de Cristo não justifica Calvino. Não é possível que algo da teologia de Calvino era antibíblico, assim como os princípios que guiaram sua conduta? William Jones declara:

E com respeito a Calvino, é manifesto que a mais evidente e, pelo menos para mim, a mais odiosa característica em todo o multiforme caráter papal se viu nele ao longo da vida — quero dizer 
o espírito de perseguição. [78]

Não é somente Cristo o padrão de seus seguidores? E Ele não é sempre o mesmo, impossível de ser mudado pelo tempo ou pela cultura? Como os papas podem ser condenados (e certamente são) pelo mal que eles fizeram sob a bandeira da cruz, enquanto Calvino é escusado fazendo o mesmo, embora em uma escala menor? As seguintes são somente duas passagens, entre muitas que condenam Calvino:

Mas a sabedoria que do alto vem é, primeiramente, pura, depois pacífica, moderada, tratável, cheia de misericórdia e de bons frutos, sem parcialidade, e sem hipocrisia. (Tiago 3:17)

Aquele que diz que está Nele, também deve andar como Ele [Cristo] andou. (1 João 2:6)

Eu me pergunto como tantos líderes cristãos de hoje podem continuar a elogiar um homem cujo comportamento foi muitas vezes tão distante dos exemplos bíblicos refletidos acima.





Fonte:

HUNT, Dave. 
Que amor é este?; Tradução Cloves Rocha dos Santos e Walson Sales da Silva. 1. Edição – São Paulo: Editora Reflexão 2015. Cap 5.

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Notas:
[1] W. H. C. Frend, The Rise Christianity (Philadelphia, PA: Fortpress Press, 1984), 482.
[2]Phillip Schaff, History of the Christian Church (New York: Charles Scribner’s Sons, 1910; Vm. B. Eerdmans Publishing Company, reprint 1959), II: 72-73.
[3]Ibid.
[4] F. F. Bruce, Light in the West, Bk, III of The Spreading Flame (Grand Rapids, MI: Wm B. Eerdmans Publishing Co., 1956), 11-13.
[5]Codex Theodosianus, (July 3, A.D. 321), XVI: 8.1.
[6]Frend, Rise, 484.
[7] Will Durant, “Caesar and Christ,” Pt. III of The History of Civilization (New York: Simon and Schuster, 1950), 656.
[8]Philip Hughes, A History of the Church (London, 1934), 1:198.
[9] E. H. Broadbent, The Pilgrim Church (Port Colborne, ON: Gospel Folio Press, reprint 1999), 38-39.
[10]Frend, Rise, 492.
[11]John Laurence Moshein, An Ecclesiastical History, Ancient and Modern, Trans. Archibald Maclaine (Cincinnati: Applegate and Co., 1854), 101; and many other historians.
[12]Laurence M. Vance, The Other Side of Calvinism (Pensacola, FL: Vance Publications, rev. ed. 1999), 45.
[13]Edward Gibbon, The History of the Decline and Fall of the Roman Empire (New York: Modern Library, n.d.), 2:233.
[14]John W. Kennedy, The Torch of the Testimony (Christian Books Publishing House, 1963), 68.
[15] John Calvin, Institutes of the Christian Religion, trans Henry Beveridge (Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans Publishing Company, 1998 ed.), III:xxv, 5.
[16] Bernard Cottret, Calvin: A Biography (Grand Rapids, MI: William B. Eerdmans Publishing Company, 2000), 128-130.
[17]Loraine Boettner, The Reformed Doctrine of Predestination (Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed Publishing Co., 1932), 408.
[18]Stefan Zweig, Eden Paul and Cedar Paul, trans., The Right to Heresy (London: Cassel and Company, 1936), 57; Cited in Henry R. Pike, The Other of John Calvin (Head to Heart, n.d), 21-22.
[19]Francois Wendel, Calvin: Origins and Development of His Religious Thought (Grand Rapids, MI: Baker Books, 1997), 98-101; Cottret, Calvin, 195-198.
[20]Wendel, Calvin, 100; Cottret, Calvin, 198-200.
[21]Cottret, Calvin, 200.
[22]RogetAmédée, L’égliseetl’État a Genèvedutemps de Calvin. Étuded’histoirepolirico-ecclésiastique(Geneva: J. Jullien, 1867).
[23] Bernard Cottret, Calvin: A Biography, tr. M. Wallace McDonald (Grand Rapids, MI: William B. Eerdmans Publishing Company, 2000) 250.
[24]Durant, Civilization, III: 474.
[25]George Park Fisher, The Reformation (New York: Scribner, Armstrong and Co., 1873), 224.
[26]Boettner, Reformed, 410.
[27]Ronald S. Wallace, Calvin, Geneva, and the Reformation (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1990), 29.
[28]Calvin, Institutes, IV: xx, 2.
[29]Ibid., 3.
[30] Zweig, Eramus, 127.
[31]Pike, John Calvin, 26.
[32]John T. McNeil, The History and Character of Calvinism (Oxford: Oxford University Press, 1966), 189.
[33]Williston Walker, John Calvin: The Organizer of Reformed Protestantism (New York: Schocken Books, 1969), 259.
[34]Walker, Organizer, 107.
[35]Schaff, History, 8: 357.
[36] Durant, Civilization, VI: 473.
[37] Vance, Other Side, 85.
[38] Durant, Civilization, IV: 465.
[39]Frend, Rise, 669.
[40]The Register of the Company of Pastors of Geneva in the Time of Calvin, trans. And ed. Phillip E. Hughes (Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1966), 137-38; cited in Vance, Other Side, 84.
[41]Schaff, History, 8:618.
[42] G.R. Potter and M. Greengrass, John Calvin (New York: St. Martin’s Press, 1983), 92-93.
[43]Register of Geneva, Cited in Vance, Other Side, 201.
[44]Schaff, History, 502.
[45] Fisher, Reformation, 222.
[46] J.M. Robertson, Short History of Freethought(London, 1914), I: 443-44.
[47]Cottret, Biography, 180-181.
[48]Ibib.
[49]Wendel, Calvin, 85.
[50]Schaff, History, 644.
[51] Bard Thompson, Humanists and Reformers: A History of the Renaissance and Reformation (Grand Rapids, MI: Wm B. Eerdmans Publishing Co., 1996), 501.
[52]Schaff, History, 519.
[53] C. Gregg Singer, John Calvin: His Roots and Fruits (Abingdon Press, 1989), 19.
[54] Otto Scott, The Great Christian Revolution (Windsor, NY: The Reformer Library, 1994), 46.
[55] Charles Beard The Reformation of the Sixteenth Century in Relation to Modern Thought and Knowledge (London, 1885), 353; also see Edwin Muir, John Knox (London, 1920), 108.
[56] Preserved Smith, The Age of the Reformation (New York, 1920), 174.
[57]James R. White, The Potter’s Freedom (Amityville, NY: Calvary Press Publishing, 2000), 98.
[58] R. C. Sproul, Chosen By God (Carol Stream, IL: Tyndale House Publishers, inc., 1986), 72.
[59] Durant, Civilization, VI: 481.
[60] Rolando Bainton, Hunted Heretic: The Life of Michael Servetus (Boston: The Beacon Press, 1953), 144; cited in Durant, Civilization, VI:481. See also John Calvin, The Letters of John Calvin (Carlisle, PA: The Banner of Truth Trust, 1980), 159.
[61]John Calvin, dated August 20, 1553; quoted in Calvin, Letters.
[62]Wallace, Calvin, Geneva, 77.
[63] Durant, Civilization, VI:483.
[64] Ibid, 484.
[65]Cottret, Biography, 78.
[66] Calvin, Institutes, IV: xvi, 31.
[67]Frend, Rise, 672.
[68]Frederic W. Farrar, History of Interpretation (New York: E. P. Dutton and Co., 1886), 235-38.
[69]Ferdinand Buisson, SebastienCastellion, Sa Vie son oeuvre (1515-1563) (Paris: Hachette, 1892), I: 354.
[70] Letter from N. Zurkinden to Calvin, February 10, 1554, cited in Cottret, 227.
[71]J. W. Allen, History of Political Thought in the Sixteenth Century (London, 1951), 87.
[72] R. Tudor Jones, The Great Reformation (Downer’s Grove, IL: InterVarsity Press, n.d.), 140.
[73]John Calvin to the Marquis de Poet, in The Works of Voltaire (Chicago: E.R. Dumont, 1901), 4: 89; quoted in Vance, Other Side, 95, who gives two other sources for this quote.
[74]Schaff, History, 8: 690-91.
[75] William Cunningham, The Reformed and the Theology of the Reformation (Carlisle, PA: The Banner of Truth Trust, 1967), 316-17.
[76] Scott, Revolution, 100.
[77]Singer, Roots, 32.
[78]William Jones, The History of the Christian Church (Church History Research and Archives, 5th ed. 1983), 2: 238.

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